Aos poucos Afonso foi recobrando os sentidos. A mordaça o incomodava, e o capuz deixava tudo escuro. O mundo girava, e ele ainda sentia o cheiro de éter. Ficou quieto, tentando situar-se. Aguçou a audição: apenas o barulho do carro, que deslizava suavemente. Pela velocidade, deveriam estar na zona urbana. Por que será que ninguém via que ele estava encapuzado? Provavelmente viajava em um furgão. Procurou manter-se calmo. Estava preso ao banco pelo cinto de segurança. Com certeza não havia mais ninguém ali. Decerto seus raptores ocupavam o banco da frente. De repente o carro parou, para logo em seguida prosseguir. “Era um semáforo, sem dúvida”. Imobilizado, vendado e amordaçado, respirava com dificuldade, mas não podia se desesperar. Aquietou-se o máximo que pôde: teve a impressão de escutar uma conversa. Tentou decifrar o que falavam, em vão. Os sons eram abafados e ininteligíveis. Repassou na lembrança as ocorrências mais recentes em sua vida.
Fugiram o quanto puderam. Perambularam sobressaltados, em cansativa e extenuante guerra de esconde-esconde, esgueirando-se em noites escuras em terras estrangeiras, até que o braço longo da Inquisição os alcançou. O julgamento foi sumário e inapelável: Pena de morte! Em três intermináveis dias sofreram o desgaste da separação derradeira. Sorveram, cada um defronte ao outro, o líquido mortal do veneno que lhes solapou a vida do corpo. O último som gutural de Afonso, olhando a donzela cheio de piedade, que o comportamento anterior desautorizava, foi: “Eu a amo!”. Essa também foi a última frase que os ouvidos da jovem escutaram. A cabeça de cada um pendeu sobre o peito, após o último suspiro.